sábado, 24 de abril de 2010

A ida

De repente esqueceram o nome dele. "Não pode deixar o corpo sozinho" ela disse. Uma vida toda sendo chamado pelo seu nome de batismo, depois da morte, virou um corpo. Foi até irônico, ele esquecia frequentemente o nome das pessoas. "Tudo bem, Mestre Coisinha?"

Ninguém esquecera seu nome, talvez fosse mais difícil admitir com uma frase inteira que ele estava morto. Sujeito, núcleo e predicado. O corpo na mesa fria. Fria... como se ele conseguisse sentir algo.

Mandaram-me escolher sua roupa, sua última roupa, na verdade. Não que fosse uma tarefa difícil, o corpo não iria achar ruim o que eu escolhesse; é que assim como os nomes, ele se esquecia de comprar roupas. Engraçado, né, a gente lá pensa que aquela roupa bonita que vamos comprar vai ser a roupa do nosso enterro, a última roupa que alguém desconhecido da funerária vai nos vestir, pensa nada. Talvez ele pensasse.

"Quando eu morrer, eu quero que me enterrem no mesmo dia" era seu pedido. Assim, foi. Sem roupa de rico, porque nem era mesmo, foi vestido só por estar vestido, até porque não iam gostar nada nada de um corpo nu no caixão, mesmo que esse seja seu próprio velório. Mas pra quê roupa, mesmo? E caixão? Ah, tá, é só pra dificultar o trabalho dos insetos, coitados.

Foi pro velório, de camisa social azul, calça social marrom e meias pretas; a cueca eu não sei, acho que usaram a mesma. Sabia que não enterra as pessoas com sapato? Não tem pra quê também, né, mas eu levei um, um novo, daqueles sem cadarços, pretos. "Pra quê esse sapato? Não precisa de sapato não, é só a meia mesmo." Acho que a ideia de conforto passou pela cabeça de todos.

Um chororô, todos foram pegos de surpresa, e o mínimo que se via era uma pessoa com a mão na boca, bem assustados. Um tentando consolar o outro. Dos discursos dos que se pronunciaram, o mais bonito foi o do seu sobrinho "Ele não tinha inimigos, não odiava ninguém, era um verdadeiro anfitrião, quem conhece sabe. Meu tio gostava de todo mundo e se não concordasse com alguém, pelo menos respeitava". Foi o mais bonito porque foi o único que falou de índole daquele senhor, os outros falavam de quantidade amorosa, não que não seja bonito, mas eu já esperava ouvir isso.

Um dos "mestres", como falava dos seus amigos de sua idade, comentou algo que me lembro bem "Vez ou outra ele andava com a camisa do avesso, cansei de ver isso." Rindo logo em seguida.

Carreata em direção ao cemitério. Aquele pisca-pisca de faróis em sinal de respeito a ele. O lado direito da pista tinha ficado tomado por carrões, carros populares com suas gentes espremidas e até motos. Passamos por pontes, e até uma construção bem bonita “Ele trabalhou aqui” me disseram. Estávamos inconsoláveis, uma perda insubstituível e só o que podíamos fazer era uma competição disfarçada de quem tinha a melhor história com ele.

Deu muita gente, não sabia que um corpo podia ter tantos amigos.